Ricardo V. Malafaia 24/março/2019
Numa noite muito fria, numa confortável cabana no alto de uma montanha. Chuva caindo lá fora. Assistindo a um filme premiado com aquela ou aquelas pessoas especiais. Calefação elétrica, wi-fi e um bom vinho. Mas de repente um raio mais próximo faz cair a força. O jeito é acender a lareira. Sem luz elétrica, mas salvo por um par de velas. Abre-se então aquele livro há tempos garimpado, mas que fora pelo vício nas redes sociais impiedosamente escanteado. Dos sons restantes, apenas o da chuva lá fora e o dos estalos da lenha que agora queima e aconchega. Mas o bom vinho segue companheiro e fiel. Graças à tempestade, porém, esse momento será jamais esquecido, pois a badalada modernidade foi substituída pela singela essência.
Desde sempre, a relação entre pais e filhos seguiu seu rumo natural, onde a troca de afeto e experiências tem sido fundamental para a própria preservação da espécie humana, assim como acontece com boa parte do reino animal. Não basta proteger, é preciso ensinar a se defender e a se desenvolver, de forma saudável e plena.
Contudo, em tempos mais recentes, sobretudo no último século, em virtude de sua elevada aceleração, a revolução tecnológica descolou-se da evolução humana enquanto sociedade. Em função desta ruptura contemporânea, abriu-se um enorme fosso para o qual todos nós estamos sendo sugados. Desconfia-se inclusive que, na base deste fosso, encontra-se um misterioso buraco negro que tem a única função de atrair para si todas as relações humanas.
Tragados por atacado, tais relações não têm apresentado indícios de resistência. Pelo contrário, aparentemente enfeitiçadas, mergulham na direção da escuridão convictas de que serão reprogramadas numa espécie de versão 2.0. E assim caminha a humanidade, negligenciando o que a História já a ensinou, muitas vezes através dos piores castigos!
Mãe de todas as relações humanas, a relação entre pais e filhos é tragada juntamente com todas as outras. A continuar esse fenômeno, a humanidade estará fadada a viver numa sociedade desconhecida, onde absolutamente tudo será possível. Onde a linha que separava o certo do errado será rebatizada como a linha que dividirá o que já foi feito do que ainda será feito. O sim e o não serão implacavelmente substituídos pelo sim e pelo ainda não!
Nem tudo o que a modernidade trás é negativo. Nem tudo que o passado deixou-nos é positivo. Mas muito provavelmente, mesclar e selecionar os melhores ensinamentos deveria ser o nosso grande objetivo. Com uma ressalva, o passado tem muito mais a ensinar do que o presente. Pois o primeiro já encerrou o seu ciclo faz tempo. O segundo mal começou o seu.
O relativismo atua nas relações humanas e nos valores como uma espécie de Photoshop dos costumes. Mais fácil customizar Deus, ou simplesmente o negar, do que renunciar a algum prazer. Mais cômodo adaptar um valor do que abrir mão de uma conduta que o beneficia. Mais conveniente relativizar uma obrigação do que se sacrificar em prol de algo ou de alguém.
Amar não é dizer sim, nem dizer não. É, apesar das invariáveis falhas humanas, pautar a vida com retidão para que sirva de exemplo a ser seguido. É ensinar o valor do sacrifício. É fazer todo o esforço para ser coerente. É reconhecer que o certo geralmente é o mais longo e árduo caminho, mas que ao seu final um porto seguro estará à espera. É chegar ao ocaso da vida com o sentimento de missão cumprida.
Os descaminhos que refletem as relações entre pais e filhos hoje delimitam as importantes mudanças de comportamento que ocorreram entre as últimas gerações separadas por “www”. Afinal, a velocidade da reação é sempre inversamente proporcional à profundidade da reflexão. Vivemos num mundo novo onde a bem-vinda tolerância ao próximo misturou-se à permissão ilimitada. A liberdade com responsabilidade provavelmente necessitando de férias afastou-se indicando como substituta a distante prima aceitação sem restrição. A dúvida maior é se o seu retorno já tem data marcada.
Como um organismo que tem nas células suas partículas fundamentais, as famílias formam a base de uma sociedade. Desta maneira, preocupar-se com o relacionamento entre pais e filhos é determinar para onde a sociedade caminhará. Se o ser humano acomodar-se e resignar-se com tudo que o novo entrega, abrirá mão do seu próprio rumo e ofertará ao acaso o destino de quem mais ama.
O futuro já estabeleceu como paradigma a permanente queda de braço entre os valores absolutos do passado e os conceitos relativos do presente. Saber diferenciar evolução de involução é exercitar a própria sabedoria. Os ensinamentos que devem fluir a partir de uma saudável relação entre pais e filhos precisam entender a modernidade como algo que só acrescerá se deixar intocável a essência que não conhece o tempo!
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Sim! Uma relação amorosa entre pais e filhos, com ensinamentos baseados no respeito e empatia ao próximo e ao diferente é a base para o próprio ser e para a sociedade. Também, o ensinamento sobre liberdade com responsabilidade sendo diferente da aceitação sem restrição.
Só não concordo muito em relação à questão da relativização. Entendi o contexto colocado, mas muitas vezes não é algo negativo, mas sim necessário. Muitas vezes, acho que a melhor coisa é parar, respirar, exercitar a nossa capacidade de relativizar, conforme situações, contextos e pessoas, e, porque não, mudar e aprender.