2021, uma inflexão na régua do Tempo

Ricardo V. Malafaia     01/janeiro/2021

Dentre tantas apresentações de artistas de rua que ocorrem diariamente, uma em particular chamou a atenção. Neste 30 de dezembro, numa avenida movimentada da Zona Sul do Rio, uma alinhada senhorinha, já bem idosa, estava solitariamente assistindo a um músico com seu sax tocando Carinhoso, do eterno Pixinguinha. O que pensava? O que sentia? Talvez gratidão, por conseguir enfrentar um doloroso isolamento. E por poder, mais uma vez, ouvir aquela música que tanto a marcou. Talvez! Mas um detalhe tornou aquela cena especial, o seu olhar. Ela não sorria. Ela não chorava. De fato, seu olhar, enigmático, corria longe e perdia-se no tempo. Num tempo que não voltará mais, mas que ainda lhe pertence.

O tempo, verdadeiramente, é um mistério. Ele passa mais rápido quando gostamos de algo. E mais devagar, quando não gostamos, ou quando, para não esquecermos do velho Albert, mais rápido estamos. Ancião, o tempo tem seus segredos, mas, generoso, não se nega revelá-los. Às vezes, corre. Outras vezes, caminha. No entanto, em 2020, ele descansou. E, no pé de nossos ouvidos, murmurou: “Aproveitai e refleti”!

Um murmúrio, que poderia ser entendido como conselho, era, de fato, uma súplica. Do alto de sua longa existência, o tempo sabia que, como estávamos, não podíamos continuar. O ser humano precisava de uma reflexão. Verdadeiramente, bem-aventurado aquele que sairá da pandemia diferente de quando entrou. Mas o tempo urge, pois ele está pronto para voltar a caminhar ou a correr. Espera apenas que as picadas das vacinas, se houver seringa, deem o sinal.

Refletir é mais do que pensar. Derivada do Latim, reflexão exprime o ato de dobrar-se novamente. Refletir é, com efeito, analisar por novos ângulos. E permitir que a mente convide o coração para uma dança, onde o ritmo será dado pelo equilíbrio e pela coerência.

Ao longo da pandemia, muita falação e discórdia. Mas também solidariedade. E se o radicalismo e o egoísmo caminham normalmente juntos, o amor e a compaixão são fortes aliadas. Tudo junto e misturado dentro de nós, complexos e pequenos humanos. Mas não por isso devemos, para essa estranha dessemelhança, lavar as mãos. Pilatos não deixou bom exemplo.

Em 2020, sobraram polêmicas. Uso obrigatório de máscara ou não. O vírus é chinês? Não sei, mas a cloroquina é coisa nossa! Confinar ou liberar geral? E se e a imunização de rebanho deveria ser atingida “a la bangu”, quais seriam os bois de piranha? Falando em rebanho, “habemus” gado?

George Floyd foi assassinado, como milhões de seus antepassados. Mas o brasileiro é racista? “Claro que não, tenho ‘até’ amigos negros. Sem problema. Minha filha só não precisa casar com um. Mas, fora isso…”.

E o debate entre direito privado x interesse coletivo? De fato, não é tão simples. Mas, quais bases justas devem nortear tal assunto? Quais os princípios? Falando nisso, a vacinação deve ser obrigatória? Liberdade versus vida!

Aliás, terminamos 2020 com os nossos vizinhos aprovando o aborto. Outro tema, mesmo confronto: liberdade versus vida. Falando às claras, Direita e Esquerda veem a liberdade e a vida como convêm-lhes. Numa hora a vida vai para lá. Noutra, para cá. Sobram argumentos e ênfases! Mas coerência, humm… Fica meio, assim, de lado.

Ah, o tempo! Faz muito dele que Moisés recebeu de Deus as tábuas com os Dez Mandamentos! Quem ainda os sabe de cor e em ordem? Analisando cada um deles, encontramos basicamente dois princípios: do amor e do respeito. Naquelas tábuas não se fala em liberdade. Não que ela não seja importante. Liberdade é valor de primeira linha. Mas amor e respeito chegaram primeiro, como ensinado há mais de 3.000 anos!

Democracia e liberdade são, verdadeiramente, valores fundamentais para o nosso presente e futuro! Mas, como tudo na vida, há relações de causas e consequências. Para haver Democracia, precisar-se-á de liberdade. Para haver liberdade, não se pode renunciar ao respeito. E para que o respeito aconteça, o amor precisará estar lá. Verdadeiramente, o amor é a máxima causa. E o respeito, o seu fiel braço direito. Todo o resto é consequência indissolúvel e natural.

O direito individual é uma conquista da civilização. Contudo ele tem o propósito de gerar segurança, não salvo-conduto para o egoísmo e para o individualismo. Nesta pandemia, quantos médicos e enfermeiros anônimos entregaram as suas próprias vidas para salvar as dos outros, geralmente desconhecidos. Cuidar e preocupar-se com o próximo não deveria ser obrigação, e sim um direito!

Liberdade é valor que precisa ser cuidada. Sem amor e respeito, entretanto, essa liberdade liquefaz-se, rápido e sem retorno, sobrando apenas um caldo de egoísmo. Amar um desconhecido não deveria ficar restrito a luzes como uma Irmã Dulce, agora Santa. O amor não tem bordas e está ao alcance de quem quiser em toda a sua dimensão. Mas se distante ficar dele por alguma limitação, pelo menos vai aí uma empatia? Não custa. Um processo virtuoso, onde não haverá perdedores!

Quem ama, protege. Começando pela vida, de quem quer que seja. Do embrião ao ancião. Dentro dessa perspectiva, todas as polêmicas colocadas acima podem ser facilmente respondidas. As falidas ideologias de Direita e Esquerda são, em si, uma contradição. Só sobrevivem ainda pela confusão, retroalimentadas pelas ignorâncias e polarizações. Dividir para confundir é estratégia básica que ainda faz seguidores.

Somos todos iguais à imagem e semelhança de Deus. Se coerência conhecêssemos, como o antirracismo não foi praticado desde sempre? Ponto para 2020!

Amor e lógica caminham juntos, pois são faces da mesma moeda. Os próprios Dez Mandamentos estão ordenados numa sequência lógica. Se São Francisco chegou a Deus por amor, Santo Agostinho, pela inteligência. Viva a lógica, viva a ciência. Que venha a vacina!

Em sua benção de Natal, o Papa criticou o ‘vírus do individualismo radical’, que torna as pessoas “indiferentes ao sofrimento de outros irmãos e irmãs”. E concluiu: “Não me posso pôr a mim mesmo antes dos outros”.

Que 2021 seja um ano de inflexão em nossas vidas. Que o amor e o respeito falem mais alto e mais forte em nossos corações e mentes do que outrora. Se assim for, talvez as centenas de milhares que se foram descansem mais em paz.

Ah, voltando à história, aquele músico, partilhando a emoção da senhorinha e fazendo jus à obra, carinhosamente aproximou-se dela. Colocando o sax de lado, finalizou a apresentação. À capela.

3 comentários

  1. Parabéns, excelentes reflexões sobre o tempo! Que venha 2021!

  2. Gostei imensamente do texto!
    Me comoveu a estória da “senhorinha”!
    Realmente o ano q acaba de nos deixar, nos levou a muitos momentos de reflexão!
    Graça

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